Pouco conhecida, a dupla excepcionalidade pode passar despercebida, fazendo com que pacientes não recebam a assistência adequada. Dia Internacional dos Superdotados é celebrado nesta quinta-feira (10). Vitor Bazilio, de 7 anos, é autista e tem altas habilidades
Mônica Base/Arquivo Pessoal
Vitor Bazilio não tinha nem 2 anos quando pegou um panfleto de mercado e começou a ler os nomes dos produtos. Era como se, num passe de mágica, o bebê de macacão e fralda descobrisse como decifrar aqueles códigos. Por outro lado, a inteligência que chamou a atenção da família bateu de frente com uma personalidade bastante específica para a pouca idade.
O menino não tinha muita habilidade na hora de socializar com outras crianças e demonstrava grande rigidez cognitiva, ao ponto de chorar por horas se algo saísse do esperado. Detestava mudanças e era extremamente apegado a rotinas, para a surpresa da mãe Mônica Base. A família resolveu procurar ajuda e temos depois teve a resposta.
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Hoje com 7 anos e morando em Paulínia (SP), Vitor é diagnosticado como autista, transtorno caracterizado pelos déficits na socialização, sensibilidades sensoriais e rigidez cognitiva, e com altas habilidades, condição que está no espectro da superdotação. A soma dos fatores o colocam em uma categoria específica da neurodiversidade, a dupla excepcionalidade.
No Dia Internacional dos Superdotados, celebrado nesta quinta-feira (10), o g1 conversa com a psicóloga Tatiana de Cássia Nakano, professora do programa de pós-graduação em psicologia da PUC-Campinas, para explicar o que é a condição em que a superdotação se manifesta com outros transtornos e porque ela está cercada de desafios (confira abaixo).
Nessa matéria você vai entender:
O que é neurodiversidade
O que é superdotação
O que é dupla excepcionalidade
Como ela se manifesta
Quais são as causas
Por que a dupla excepcionalidade é desafiadora
Quais sinais observar
O que fazer após o diagnóstico
Por que diagnosticar é importante
♾️ O que é neurodiversidade?
O conceito de neurodiversidade entende que existem variações naturais na formação dos cérebros. Pessoas que têm um desenvolvimento dentro do considerado padrão são chamadas de neurotípicas, enquanto as outras são neuroatípicas ou neurodivergentes.
Essa ideia é usada para explicar a existência de transtornos do neurodesenvolvimento, como o autismo, a dislexia e a superdotação, entre outros. Isto é, essas condições surgem quando a estruturação cerebral é diferente do “comum”.
Dessa forma, quem tem uma dessas condições é neuroatípico.
⚡ O que é superdotação?
Uma pessoa superdotada é aquela que tem um alto desempenho em uma ou mais áreas do conhecimento. Porém, diferentemente do que se pensa, nem sempre essa é uma mera questão de inteligência ou QI alto. Na verdade, a superdotação pode se manifestar em muitos setores, inclusive do âmbito emocional, como detalha Tatiana.
“A inteligência é apenas uma das áreas em que a superdotação pode se manifestar. A pessoa pode ter uma inteligência na média e ter uma criatividade altamente elevada, que isso também é superdotação. A pessoa pode ter ainda uma alta capacidade de liderança ou uma alta psicomotricidade [habilidades emocionais, cognitivas e motoras]”.
🧠 O que é dupla excepcionalidade?
De acordo com a psicóloga, a dupla excepcionalidade ocorre quando “uma pessoa apresenta um transtorno que causa déficit em algumas áreas e, ao mesmo tempo, outro que a leve a um potencial elevado, uma superdotação”. Como o nome sugere, são aqueles que possuem os dois diagnósticos simultaneamente.
🤔 Como ela se manifesta?
“É comum você ver, por exemplo, a associação da superdotação com transtornos do tipo TDAH [Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade], TEA [Transtorno do Espectro Autista], dislexia, com problemas de aprendizado. Essas são as manifestações mais comuns”, comenta a psicóloga, que ainda dá outros exemplos.
“A gente pode falar que o autista tem o déficit na questão social, pode ter isolamento social. Mas, de repente, essa pessoa desenvolve um lado altamente criativo. Ou o contrário, ela pode se tornar muito boa nessa parte de psicomotricidade, pode se destacar em esportes”.
“Você consegue imaginar, por exemplo, uma pessoa que tem uma deficiência intelectual e é superdotada? Porque isso é absolutamente possível. As pessoas tendem a ver quem tem deficiência intelectual como alguém de inteligência menor, mas isso é errado. Ela pode ter um déficit cognitivo, mas ter grande habilidade com música ou outras artes, ter uma parte social aguçada”.
📚 Quais são as causas da dupla excepcionalidade?
O que se sabe hoje, segundo Tatiana, “é que essas condições são independentes. Pode ter a ver com a questão da formação cerebral, pode ter a ver com vulnerabilidade no pré-natal, como falta de alimentação adequada, mas não se tem um motivo que justifique isso totalmente”.
Independentemente de eventuais causas, vale dizer que a dupla excepcionalidade faz parte da diversidade humana. Além disso, não tem 'cura' pois não é uma doença. Entretanto, acompanhamentos podem ser necessários para auxiliar quem tem com a condição.
✏️ Por que a dupla excepcionalidade é desafiadora?
Um dos principais desafios, de acordo com a especialista, é que na maior parte das vezes o paciente acaba chamando mais atenção pelo transtorno que causa déficit do que pelas altas habilidades. Isso significa que as dificuldades acabam falando mais alto e as potencialidades, que poderiam ser trabalhadas, ficam esquecidas.
“A superdotação vai ficar secundária e, talvez, nunca seja identificada. Aí a pessoa fica sem diagnóstico e passa a vida sendo taxada como alguém que só tem, sem que aquelas habilidades sejam reconhecidas”.
Outro problema está na falta de conhecimento sobre superdotação, que muitas vezes é associada apenas à inteligência acadêmica. Um aluno que vai mal na escola e é extremamente criativo nas artes, ou que não socializa, mas é excelente nos esportes, não receberá os créditos que merece e nem será estimulado.
A profissional ainda cita outros desafios. Nas escolas, faltam psicólogos para ajudar no diagnóstico. Na rede pública de saúde, nem todos os profissionais estão capacitados para isso. Os professores, que poderiam colaborar nesse processo, podem estar sobrecarregados, enquanto as famílias e a sociedade em geral talvez nem saibam que a dupla excepcionalidade existe.
“Porque é muito mais fácil as pessoas serem identificadas pela deficiência e estarem recebendo algum tipo de atendimento para isso do que o contrário, alguém ser olhado pelos potenciais acima da média. Dá para contar nos dedos os locais de atendimento para superdotados que se tem no país”, pontua.
💡 Quais sinais observar?
Uma forma de lutar contra essas dificuldades é observando os sinais. Não é incomum que os pais achem seus filhos brilhantes. No entanto, a profissional explica que é preciso ter cuidado. “Em alguns casos, a criança só tem uma inteligência dentro do esperado. Em outros, é algo que realmente chama atenção”.
“De modo geral, as pessoas que têm superdotação são muito curiosas. Quando crianças, fazem muitas perguntas e querem se aprofundar muito nos conhecimentos. São muito motivadas nas coisas que gostam, querem aprender tudo muito rápido, resolvem problemas com agilidade e acabam sendo perfeccionistas”.
Com a desconfiança, é hora de procurar a ajuda de especialistas. Formalmente, o diagnóstico é feito por meio da avaliação multidisciplinar, que inclui a realização de testes neuropsicológicos. Isso vale tanto para identificar a superdotação, quanto para as outras neuroatipicidades.
🤯 A partir do diagnóstico, qual o próximo passo?
“Os encaminhamentos dependem muito do caso”, conta a especialista. “O ideal, no caso da dupla excepcionalidade, é que seja feito o atendimento tanto da deficiência, para minimizar prejuízos, quanto da superdotação para estimular esse potencial elevado. O importante seria que fosse feito de uma forma concomitante”.
“Pode fazer um aprofundamento de estudos na área em que a pessoa tem esse potencial elevado, pode ter reforço escolar da outra área. Então você pode dar mais disciplinas para auxiliar no desenvolvimento e, se for o caso, levar o para tratamentos específicos com fonoaudiólogo, neurologista e psicoterapia”.
Diagnosticar é importante
Mônica conta que o filho começou a ler antes dos 2 anos de idade
Mônica Base/Arquivo Pessoal
Quando se fala em neurodiversidade, buscar diagnósticos não é criar rótulos. Pelo contrário. Essa é uma forma de se conhecer melhor e buscar qualidade de vida. No caso das crianças, a descoberta precoce ajuda no desenvolvimento. Já entre os mais velho, traz respostas que, talvez, nunca seriam encontradas.
“Na maior parte das vezes, são pessoas que chegaram até a vida adulta sem nenhum diagnóstico. Na maior parte, eles só se dão conta quando os filhos passam por avaliação. Vem aquela coisa de: 'poxa vida! Agora consigo entender muita cosa que aconteceu na minha vida'”, completa a psicóloga.
Graças a esse diagnóstico, crianças como o Vitor podem ter o acompanhamento adequado para evidenciar suas potencialidades e monitorar suas dificuldades, como explica a mãe. “Ele percebe que sabe um pouco mais que os outros e já se coloca bastante na posição de ajudar. Ele estuda em uma escola que oferece um currículo enriquecido, que tem total capacidade de enriquecer as atividades para ele”.
Hoje o menino tem acompanhamento em escola e está desenvolvendo suas habilidades
Mônica Base/Arquivo Pessoal
“Ele tem uma facilidade absurda para essa parte acadêmica intelectual e muito interesse por tecnologia, programação. Ele lê em português, em inglês, ele assiste vídeos em outra língua. Ele já faz algumas coisas de programação. É um raciocínio muito rápido e muito questionador, né? Uma criança que questiona muito, uma criança que pergunta muito. Nesse sentido, a gente teve que se adequar bastante, porque é uma criança bem à frente”, relata Mônica.
O mais importante de tudo isso é que o menino nunca deixará de ser autista e, se conhecendo melhor, poderá se desenvolver em meio aos tantos desafios atribuídos pela dupla excepcionalidade. “A gente também precisa ficar sempre chamando ele para engajar os assuntos, para ampliar o repertório dele cada vez mais. Uma coisa que a gente conversa sempre na escola é da inclusão também, né? A criança também precisa de muita atenção”.
“Muita gente aí o senso comum acredita que a criança de superdotação e altas habilidade é um gênio, que só tem a parte legal, mas não. A gente tem todo um trabalho aí com ele, de fazê-los se adequar socialmente às crianças da faixa etária dele, de usar toda essa alta habilidade de forma correta e na hora correta, porque senão ele fica uma criança inadequada, que não consegue fazer parte do jogo social”.
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